sábado, abril 02, 2016

Considerações sobre os manuais escolares e o debate em torno da sua "gratuitidade"

Declaração de interesses

Antes de mais, começo por fazer uma «declaração de interesses»: trabalho em edição de manuais escolares há mais de dezasseis anos. Este facto tornar-me-á parte interessada nesta questão, mas, por outro lado, deverei ser alguém que sabe minimamente do assunto de que discorre neste texto. As opiniões que aqui apresento são, porém, da minha exclusiva e pessoal responsabilidade.

O que significa «gratuitidade» dos manuais

O XXI Governo Constitucional anunciou recentemente a introdução da gratuitidade dos manuais escolares para o 1.º ano de escolaridade e ficou prometida a sua extensão progressiva a outros anos do Ensino Básico.

Convém esclarecer a noção de gratuitidade aplicada aos manuais escolares. Aquela pode aplicar-se, à primeira vista, ao adquirente (o encarregado de educação), mas importa chamar atenção para o facto de que os manuais vão continuar a ter de ser concebidos, realizados, produzidos e distribuídos – e que continuarão, assim, a ter custos que alguém terá de pagar.

Neste contexto, o que o Governo está a propor é que os gastos em que incorriam até agora os adquirentes sejam partilhados pelos restantes contribuintes (através de impostos, de dívida pública ou de outro meio de financiamento da despesa pública). Gratuitidade propriamente dita não há – o que há é uma difusão dos custos de aquisição dos manuais em uso por todos os contribuintes.

Uma vez que o debate público sobre o livro escolar é geralmente feito por pessoas da classe média ou média alta, é estranhamente esquecido que existe há muitos anos em Portugal um sistema público de oferta ou empréstimo de manuais escolares a estudantes de famílias carenciadas. Implícita no debate sobre o livro escolar está quase sempre a ideia de que essas famílias carenciadas seriam prejudicadas pelos preços (alegadamente) demasiado altos praticados pelas editoras escolares. O esquecimento conveniente destes apoios públicos – reforçados, aliás, por várias câmaras municipais – distorce o debate e introduz-lhe uma componente emotiva que só pode fazer-nos derrapar para a demagogia.

As ideias-feitas sobre o preço dos manuais escolares

A popularidade da ideia da «gratuitidade» dos manuais escolares radica na convicção acriticamente repetida de que os manuais escolares são «caros». Mais: que o são porque as editoras escolares, de alguma forma, se conluiam para manter esses preços acima do que seria razoável para assegurar a rentabilidade da sua atividade.

Se essa fosse a realidade seria difícil explicar por que razão se tem assistido, nos últimos anos, a uma concentração das editoras em grandes grupos. Várias pequenas editoras escolares foram adquiridas por editoras maiores, o que dificilmente aconteceria se estivessem a colher grandes proventos na sua atividade.

Contrariamente à convicção irrefletida e generalizada, os materiais didáticos são produtos caros em termos de realização e produção. A quantidade de pessoas que trabalha num manual escolar é muitíssimo maior e diversificada do que a que trabalha num simples livro de texto. Se comparados com simples livros de texto (como são a generalidade dos livros de edições gerais), os manuais escolares são realizados por equipas de autores a que se juntam consultores científicos e, nos últimos anos, uma certificação oficial que é imposta pelo Ministério da Educação, mas que é paga pelas editoras. Além disso, são livros que incluem imagens (cujos direitos são pagos), mapas, gráficos, ilustrações e infografias feitos de raiz (que têm custos) e que são impressos a cores e em condições mínimas de robustez.

Acresce a estas características sui generis do livro escolar o facto de que as editoras oferecem, em todos os anos de novidades (que obedecem a um calendário de adoções estabelecido pelo Ministério da Educação), milhares de livros a todos os professores em exercício. Os docentes de todos os anos de escolaridade não adquirem livros – são as editoras que lhos oferecem, obviamente com custos elevados. Este facto nunca é referido, mas são as editoras escolares que pagam os materiais didáticos que permitem aos docentes de todas as disciplinas e de todos os anos de escolaridade fazerem diariamente o seu trabalho nas escolas.

No caso das editoras mais pequenas, com quotas de mercado mais reduzidas, as tiragens de livros gratuitos para os professores excedem muitas vezes as tiragens de livros para os alunos, adquiridos pelos encarregados de educação. São livros «invisíveis» para a generalidade do público, mas que foram produzidos e pagos pelas editoras, sem qualquer ganho direto.

Nas últimas décadas, estas ofertas aos professores – que se tornaram uma instituição adquirida e indiscutida – complexificaram-se e incluem recursos de avaliação (fichas, guiões de trabalho, etc.) e de programação do trabalho letivo (planificações e planos de aula), além de um conjunto cada vez mais desenvolvido de recursos multimédia para projeção e utilização em sala de aula. Estes materiais têm contribuído para uma melhoria do trabalho dos docentes sem que o Ministério da Educação e os contribuintes os tenham de pagar.

O mercado do livro escolar não é um mercado livre

A responsabilidade do Estado na moldagem da atual configuração do mercado da edição escolar tem sido pouco considerada. O preço dos livros escolares é, de há muito, tabelado pelo Governo. Dada a convicção generalizada, também há muito tempo, de que o preço dos manuais é alto, é fácil perceber que a tendência dos governantes não é permitir grandes aumentos de preços.

Esta situação de preços tabelados beneficia objetivamente (em termos concorrenciais) as grandes editoras e grupos editoriais, que estão em posição de realizar economias de escala na produção e divulgação – que se tornam mais caras e arriscadas para as suas concorrentes mais pequenas.

A este facto soma-se a instabilidade normativa e curricular a que o Ministério da Educação sujeita o trabalho das editoras e que as tem feito incorrer em custos de que ninguém fala e que dificultam o planeamento estratégico da sua atividade. Mais uma vez, as pequenas editoras são as que ficam mais vulneráveis por terem menos almofadas financeiras e menos capacidade de realizar economias de escala para amortecer estes embates muitas vezes imprevistos.

No entanto, isto não quer dizer que as grandes editoras sejam responsáveis por esta situação. A sua atividade está condicionada e é prejudicada pelos mesmos elementos que afetam as pequenas; simplesmente, elas estão em melhores condições de suportar estes choques.

O que, de qualquer forma, deve ser claro é que o mercado da edição e do livro escolar é particularmente regulado e condicionado pela ação arbitrária das «políticas públicas» definidas pelo Estado para as áreas da edição e da Educação – estando longe, pois, de ser um mercado livre em que as editoras «fazem o que querem».

O que são bons livros e bons autores

O manual escolar é um produto final que tem um longo trabalho de anos (para não dizer de décadas) por trás. Há quem julgue que seria fácil «encomendar» livros aos «bons autores» e que esses livros apareceriam para ser impressos. Tal ideia resulta de um completo desconhecimento sobre como se faz um bom livro didático ou de como se «faz» um bom autor.

Ninguém aprende a fazer materiais didáticos na sua formação profissional – nem os professores recrutados pelas editoras como autores. As editoras contratam docentes para esse trabalho porque são eles que conhecem melhor do que ninguém a realidade das escolas, as componentes curriculares, os hábitos pedagógicos estabelecidos e as necessidades dos seus colegas, bem como as dos discentes em ambiente de escola. Mas isso não chega para se ser um bom autor. As editoras têm de arriscar, apostando em professores que lhes parecem ter potencial como autores. Enganam-se algumas vezes. É um trabalho de descoberta e que vai sendo afinado ao longo dos anos e em que os profissionais das editoras – nomeadamente os coordenadores editoriais ou editores – têm um input muito maior do que se pensa.

São as editoras que descobrem profissionais com potencial e que os formam como autores. Frequentemente, os novos autores integram-se em equipas já consolidadas e fazem um autêntico percurso de formação e maturação de vários anos. O mesmo poderia ser dito sobre outros profissionais, muitas vezes externos, que trabalham nos projetos didáticos: paginadores, documentalistas, infografistas, ilustradores, revisores linguísticos e até consultores científicos e pedagógicos recrutados em universidades e escolas superiores de educação.

As editoras escolares são vistas por muitos como empresas apenas movidas pelo objetivo do lucro – e certamente que esse objetivo faz parte da sua atividade como organizações privadas que têm de remunerar o trabalho pelos seus próprios meios, assegurar investimentos sem recurso excessivo ao crédito e uma margem financeira que as coloque ao abrigo de maus anos de vendas e dos imponderáveis que afetam a sua atividade no mercado.

Mas cada editora é muito mais do que isso. Cada uma delas transporta uma cultura própria, um know-how transmitido entre gerações de profissionais e que se entrecruza com o trabalho de colaboradores externos que são integrados nesse ambiente único em que circulam conhecimentos, experiência acumulada e hábitos de trabalho em equipa. É nesse ambiente que nascem os manuais escolares. Esse ambiente leva décadas a construir. Não se cria de um dia para o outro nem se gera com a constituição de equipas ad hoc como as que certos organismos do Estado formam para elaborar documentos ou pareceres.

Ninguém conseguirá fazer bons manuais escolares fora deste ambiente empresarial. Esta é uma realidade em Portugal e em todo o Mundo.

Onde está o verdadeiro perigo de más práticas

As editoras escolares são ciclicamente apontadas por certas vozes como organizações poderosas e influentes sobre o sistema educativo e o Ministério da Educação. Esta ideia pode radicar numa simples ilusão de ótica. Essas editoras são, sem dúvida, por razões já aqui referidas, importantes parceiras dos professores no seu trabalho diário. Por razões também já referidas, veem a sua atividade profundamente afetada por decisões tomadas por sucessivos governos – que afetam tanto a sua atividade como o trabalho dos professores nas escolas.

Que, neste contexto, existam contactos entre essas editoras e responsáveis do Ministério da Educação não é só natural – é inevitável. Que as editoras tentem dar a conhecer os seus pontos de vista sobre decisões que as afetam é algo que só pode espantar pessoas distraídas. Que desses contactos se tirem ilações sobre más práticas, é algo que convém provar. Essas más práticas até podem (em teoria e ocasionalmente) acontecer, mas não devem servir para justificar uma mudança completa de um estado de coisas que não está diretamente relacionado com elas.

A lógica da difusão da suspeição e da demonização pública de pessoas e organizações pode ser instintiva para muita gente, mas não se coaduna com uma sociedade civilizada e com o Estado de Direito. Tudo o que nos impeça de olhar racionalmente para a realidade pode ter custos muito elevados. As intenções podem ser as melhores, mas isso não exime ninguém de responsabilidade.

Atualmente, temos um processo claro, descentralizado e fiscalizável de prescrição de manuais escolares pelos grupos disciplinares de docentes de cada escola. Temos um processo claro, no mercado, de aquisição pelos encarregados de educação dos manuais prescritos. A «gratuitidade» vai processar-se como? Quem adquirirá os manuais? Como chegarão eles aos discentes ou aos encarregados de educação? De quem serão os manuais? Como será suposto um aluno manusear um manual destinado à partida à reutilização? E em que estado chegará esse manual às mãos de um aluno no seu sexto ano de utilização (período de vigência dos manuais prescritos)? Que processo alternativo ao existente será tão célere na aquisição e distribuição dos manuais antes do início do ano letivo?

A estas perguntas somam-se outras, para terminar. Fazer sair do mercado a compra e distribuição dos manuais para a entregar ao Ministério da Educação, às câmaras municipais ou aos agrupamentos escolares não vai criar grandes incentivos para essas entidades manifestarem preferências por certas editoras e para pressionarem os grupos disciplinares na decisão da prescrição? Um tal sistema não estará a criar todas as condições para ser muito mais opaco do que o atual – e propenso a más práticas?


A alternativa, dentro da lógica da «gratuitidade», poderia ser o envio de um «cheque escolar» às famílias para aquisição de manuais. Mas antevêem-se aqui, facilmente, custos de fiscalização enormes sobre um processo de casuística medonha. Mais fácil seria estabelecer uma dedução fiscal (sem «tetos») dos gastos com manuais escolares nas declarações de rendimentos dos encarregados de educação, os quais deveriam, no ato da compra, facultar ao livreiro o seu número de contribuinte, aproveitando-se assim o sistema já existente de e-fatura. O benefício seria poupar ao Estado (e aos contribuintes) custos de fiscalização e, sobretudo, o incentivo a más práticas – que são potenciadas pela substituição do mercado por circuitos burocráticos.

[Ler também: Do «editor escolar» como «artesão».]