terça-feira, novembro 22, 2016

Os ministérios bíblicos na igreja (II)

[Grão de Trigo, Agosto 2015, pp. 2-3.]

Os ministérios formais na igreja

As igrejas são a reunião dos crentes com o propósito de nos fazer proclamar a Palavra, de velarmos uns pelos outros nos aspetos exteriores da fé e de nos instruirmos mutuamente. Os dons que dão lugar aos ministérios carismáticos – e informais – (de que tratámos no artigo anterior) são fundadores e inspiradores para a igreja e representam formas excecionais de liderança. Mas a igreja, na sua missão, não pode estar dependente do que é excecional. Para ilustrarmos este argumento, as igrejas que em Portugal e no Brasil adotaram como confissão a Breve Exposição das Doutrinas Fundamentais do Cristianismo consideram provavelmente o seu autor, o Dr. Roberto Kalley, um apóstolo no sentido lato de 1Cor. 4:9. Mas essas igrejas, para persistirem, não poderiam esperar encontrar em cada geração, até ao presente, alguém tão dotado e reconhecido como Kalley. O mesmo se poderia dizer relativamente a irmãos (se os houver) considerados profetas ou doutores. Outros ministérios têm de servir às necessidades da igreja no dia-a-dia, ajudando a dotá-la de uma regularidade sem a qual os grupos humanos não sobrevivem. É, pois, necessário haver ministérios regulares na igreja.

No Novo Testamento, é nos Atos dos Apóstolos e nas Epístolas que surgem as referências a estes ministérios, precisamente porque é nesses livros que se relatam acontecimentos ou se abordam problemas relacionados com as primeiras comunidades cristãs. Os ministérios regulares ou de nomeação eclesiástica são aqueles que a igreja mantém regularmente organizados e para os quais, reunida em assembleia formal, nomeia ou chama ou confirma irmãos para os exercerem. Nos Atos dos Apóstolos e nas Epístolas referem-se dois ministérios regulares ou formais: o presbiterado e o diaconado.

Os diáconos

Etimologicamente, «diácono» será qualquer irmão que exerça um ministério (ou serviço) na igreja. É por essa razão que Atos 6:1-6 é muitas vezes considerada a passagem que testemunha a instituição do diaconado, pois é aí que se conta que os apóstolos pediram à igreja em Jerusalém que escolhesse do seu seio sete homens para servirem às mesas durante a partilha de alimentos. O conjunto dos irmãos elegeu os sete e os apóstolos impuseram-lhes as mãos em sinal de reconhecimento daquele ministério. Mas seria errado entender-se que, por ter sido aquela a causa imediata da sua instituição, àquele tipo de tarefa se reduza o serviço dos diáconos. Bem lida, o que aquela passagem nos diz é que os apóstolos pediram à comunidade a designação de irmãos que trabalhassem ativamente na resolução prática de uma necessidade que estava a criar mal-estar dentro da igreja e a dar mau testemunho (o facto de as viúvas de irmãos de língua grega estarem a ser prejudicadas voluntária ou involuntariamente por irmãos de cultura judaica). Por essa razão, os escolhidos deveriam ser, de acordo com a solicitação dos apóstolos, «de boa reputação, cheios do Espírito e de sabedoria» (v. 3). Não eram pessoas que simplesmente soubessem servir às mesas, mas que tivessem autoridade moral para serem respeitados e cujo testemunho na igreja fosse entendido como guiado pelo Espírito Santo, patente em palavras e atos sábios. Sem estas características não saberiam ser nem seriam reconhecidos como portadores de qualidades suficientes para irem ao encontro dos necessitados, dos perdidos ou dos desavindos dentro da igreja.

O grau de exigência na escolha dos diáconos era elevado, pelo que não espanta que um dos eleitos fosse Estêvão, o primeiro mártir e autor de um célebre discurso perante o Sinédrio que comprova grande conhecimento das Escrituras e do significado transcendente da pregação de Jesus (Atos 7:2-53). O apóstolo Paulo segue a mesma linha exigente quando define, em 1Tim. 3:8-13, o perfil do diácono.

Ao estarem orientados para o serviço por meio da solicitude (atenção às necessidades espirituais, afetivas e materiais dos irmãos) e de uma retidão de juízo, de propósitos e de atos, os diáconos assumem, assim, as qualidades que idealmente deveriam existir em todos os irmãos no seu convívio na igreja. Os diáconos são chamados a ser os guardiões ou os cultores dessas virtudes não só para resolução prática de falhas ou de necessidades entre irmãos, mas também para edificarem toda a comunidade, sendo agentes ativos e conscientes do bom testemunho que a igreja deve dar a crentes e não crentes.

De acordo com as características já referidas, os diáconos parecem também vocacionados para ajudarem na resolução de conflitos entre irmãos no espírito de Mat. 18:15-22 (nomeadamente para serem as testemunhas a que se refere o v. 16).

Os presbíteros

É difícil conceber que mais algum ministério formal possa ser exercido na igreja sem ter como base ou ponto de partida as qualidades e virtudes atribuídas ao diácono. [Neste sentido, pois, e não só no relevante e revelador sentido etimológico, todos os ministros da igreja são diáconos.]. Se, como foi dito, o diácono assume as características que idealmente todos os irmãos deveriam ter no convívio na igreja, isso aplica-se ainda mais aos irmãos que assumem outros ministérios – com destaque para os presbíteros.

O termo grego presbyteros era usado no tempo da igreja apostólica por associações religiosas e profissionais do mundo romano com um sentido muito semelhante ao que foi adotado nas assembleias (ekklesiai em grego) ou igrejas cristãs [Philip A. Harland, Associations, Synagogues and Congregations, Minneapolis: Fortress Press, 2003, p. 182]. Esse termo significava «ancião» e era usado como sinónimo de «supervisor» ou «superintendente» (episkopos em grego). Mas o termo «ancião» (zaqen em hebraico) era também usado no Antigo Testamento, sendo originário do período pré-monárquico da história de Israel. O termo surge em Êxodo 12:21 e Números 11:16, mas também, já no período monárquico, em 1Reis 21:8-14, Jer. 26:17 ou Prov. 31:23, ou, no tempo do Segundo Templo, em Esdras 6:7-8 e 10:14. Os anciãos da tradição judaica são também referidos no Novo Testamento, por exemplo em Marcos 15:1 e Atos 5:21 e 22:5. Os anciãos eram chefes de famílias extensas, exercendo autoridade religiosa e judicial sobre os seus parentes, sendo criticados por Jesus em Marcos 7:3, 5, onde são associados aos fariseus [J. A. Overman, s.v. «Elder», The Oxford Companion to the Bible, 1993, p. 182]. Parece claro que os anciãos ou presbíteros das primeiras comunidades cristãs, mencionados em Atos e nas Epístolas, não têm relação direta nem semelhança formal – talvez apenas uma filiação simbólica para os judaizantes – com o zaqen do Antigo Testamento.

Nas primeiras comunidades cristãs, os anciãos podiam ser chamados ou nomeados pelos apóstolos (Atos 14:23 e Tito 1:5) segundo o critério de pertencerem à família espiritual do Senhor e não à posição familiar ou tribal na sociedade – tal como Jesus escolhera os próprios apóstolos e os fizera seus parentes espirituais (Mat. 12:46-50). Na ausência dos apóstolos, compete obviamente à assembleia dos irmãos reconhecer no seu seio aqueles que revelam dons para o presbiterado. Paulo, depois de traçar o perfil pessoal do presbítero, de uma forma que lembra o que para os diáconos também estava estabelecido (Tito 1:6-8), considera-lhe atribuídas as funções de ser «apegado à palavra fiel, que é segundo a doutrina, de modo que tenha poder tanto para exortar pelo reto ensino como para convencer os que o contradizem» (Tito 1:9). Em Tim. 5:17, o apóstolo considera-o digno de estima e honra sobretudo se se dedicar à «palavra» e à «doutrina» (isto é, ao ensino). O presbiterado é, assim, um ministério centrado na Palavra – no seu estudo, proclamação e explanação. Ao presbiterado pertence trazer a Palavra para o centro da vida espiritual da igreja, pois a Palavra é o «pão da vida» e o «pasto» dos crentes.

Poder-se-ia dizer que a diferença substantiva entre um diácono e um presbítero é que o segundo tem a obrigação de pregar e ensinar regularmente (o que não invalida que o primeiro o possa fazer voluntária e esporadicamente).

Outros ministérios formais

É neste contexto que aos presbíteros é concedida a função simbólica de poderem ser «pastores», de «apascentarem» os seus irmãos na igreja, como Jesus exortou Pedro a fazer (João 21:15-17). Nesse caso, o presbítero assume – por solicitação ou reconhecimento da igreja – uma vocação que não é só a de proclamar, ensinar e explanar a Palavra, mas que é também a de, através dela, conduzir os seus irmãos ao «pasto» e ao «pão» que alimentam o seu coração pelas veredas mais apropriadas às condições de cada um. Para isso, o presbítero que é pastor tem também de dedicar-se aos irmãos com uma grande dose de solicitude, de conhecimento e de dedicação a cada um, de modo que a proclamação que fizer da Palavra seja adequada aos corações concretos que tem diante de si na igreja.

Se incluirmos ainda no conjunto dos ministérios formais o de evangelista (missionário ou obreiro como referido em 2Tim. 4:1-5), e que a igreja pode querer designar para trabalho missionário de entre os presbíteros, ficamos com os quatro ministérios elencados na Breve Exposição (artigo 22.º): diáconos, presbíteros, pastores e evangelistas.

Conclusão sobre a estrutura formal da igreja

Daquilo que foi dito se pode concluir que a formalização dos ministérios na igreja não conduz a uma estrutura hierárquica, mas a uma estrutura concêntrica. Uma ilustração desta realidade pode ser a que se segue:
Podemos ser membros da igreja sem nela termos ministérios reconhecidos – desde que sejamos batizados e que tenhamos sido aceites na comunidade comungante e confessante. De entre os membros da igreja há, porém, aqueles que foram chamados ao exercício formal da diaconia (o ministério por excelência) – e como tal reconhecidos pela assembleia dos irmãos. E é do seio destes ministros que a igreja reconhece também os presbíteros, que são os «ministros» ou «diáconos» da Palavra.